A SEGURANÇA PÚBLICA ENTRE O ACHISMO, A RESERVA LEGAL DE PODER, A POLÍTICA E A CIÊNCIA: UM BREVE ANÁLISE DE QUATRO FATORES PRESENTES AOS DEBATES



Prof. João Alexandre dos Santos* 


     Em três décadas de uma vida dedicada ao estudo e ao ensino nos campos da sociologia, gestão pública e de segurança pública, mais precisamente na disciplinas de prevenção ao crime, políticas públicas e policiamento, alguns pontos me incomodam e também àqueles que possuem uma honestidade intelectual e ainda não estão possuidos por inteiro de um corporativismo cego ou ideologias alienadoras. Tais pontos, já revelados no título deste artigo, de forma muito profunda permeiam todos os debates, as proposiçõe políticas e ações afirmativas. Se fazem presentes quando nos propomos a discutir avanços, inovações, divisão de poderes e competências ou até, formas mais efetivas de participação popular em um sistema de gestão integrada desses valiosos serviços públicos.

Vejamos brevemente algumas considerações sobre eles:

1. Segurança pública: O achismo como fonte de elaboração e razão preponderante nos processos decisórios:


     Não consigo enumerar as vezes em que, quando chamado a participar de reuniões de planejamentos, de elaboração de planos de segurança, para assesorar na construção de ações afirmativas, projetos de leis ou emitir opinião técnica como partícipe dos famosos Grupos Técnicos (GT), onde muitos deles sequer possuiam uma pauta lógica ou razoável, o achismo era a principal fonte de proposições. 

Da inocência originada pelo puro desconhecimento do tema por parte de alguns asessores (esta perfeitamente perdoável)  até as dolosas proposições erradas, vindas até de policiais graduados ou de altas patentes (não aceitáves moralmente), um verdadeiro show de horrores acontece nos bastidores das discussões sobre segurança pública. Do interesse mais mesquinho até o acalorado debate sobre quem pode mais e tem mais poder, tudo o que puder ser imaginado compõe veladamente uma pauta não escrita de como manter as coisas como estão para não afetar interesses de muito atores, inclusive os componentes das organizações criminosas. Obviamente não uma regra, mas com percentuais preocupantes. 

  • Acho que devemos acabar com as polícias (correntes políticas mais à esquerda);
  • Acho que devemos municipalizar as políciais (corrente municipalista);
  • Acho que devemos unificar as políciais (corente transformadora institucional);
  • Acho que devemos desmilitarizar a polícia militar (correntes ideológicas);
  • Acho que devemos integrar as políciais (corrente integradora); 
  • Acho que devemos criar uma polícia ostensiva federal (corrente centralizadora);
  • Acho que o problema é o povo (corrente transferidora);
  • Acho que devemos adotar um direito penal do inimigo (corrente penalista);
  • Acho que a melhor política de segurança é tito, porrada e bomba (corrente repressora) 
  • Acho isso, aquilo e mais aquilo outro ...   

     O "eu acho", é solto aos quatro ventos, sem nenhuma conexão com o razoável, possível ou provável. Apenas acham. O que acham? E pasmem, muitas leis que conhecemos, programas e políticas de governos foram elaboradas tendo o achismo como base. 


 2. Segurança pública: A reserva legal de poder, como algo sagrado, intocável e inegociável


     Imagine-se em uma reunião, onde todos possuem o conhecimento, a inteligência adequada, os meios necessários e o poder de atuar isolado ou conjuntamente nas soluções que se buscam, mas não recuam um milímetro sequer, para que o outro possa, em seu espaço de poder, atuar de forma mais efetiva, mesmo que suplementarmente. É incrível a rapidez e a memória para citarem os artigos, parágrafos e alíneas onde suas competências estão listadas, não para fins de uma necessária interpretação estendida, para colaborar um pouco mais, mas exclusivamente para fins reducionistas e de reservas legais de poderes.

Se formo discutir problemas de insegurança pública e suas ações direitas e indiretas, entrando no campo do policiamento administrativo de ordem pública, temos um embate (não um debate), com data e hora marcada com as polícias estaduais (mais precisamente a militar), o Poder Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública, Associações e Sindicatos, Fiscais da Prefeitura, Conselheiros tutelares, Vereadores, Guarda Municipal, ONGs dentre outros. 

Só não teremos problema com a população, pois essa aguarda ansiosamente por ações efetivas em seu favor e muitas vezes, são também revitimizadas pelos atores e entes acima citados.  

Todos sabemos que ningúem gosta de abrir mão de poderes em detrimento de outros. Sabemos também, que quando alguém tem o dever legal de fazer mas não o faz e outro, de forma mais rápída e técnica executa apresentando bons resultados, o brilho da majestade fica ofuscado e o seu ego ferido. 

Nesta situação temos um grande problema institucional e político para ser mediado, pois a mágoa pessoal dos agentes ou a diretriz corporativa (pública ou privada) que eles representam dentro do contexto em debate, podem causar danos irreparáveis ao que se pretende. Lembre-se que estamos em um teatro, onde o script é produzido por diversos atores e todos querem ser o protagonista. Nínguém deseja ser coadjuvante ou figurante nesse roteiro em construção. 

Se os órgões policiais fizessem uma interpretação estendida de suas competências, visando atender a supremacia do interesse público e não os seus, não seria muito difícil uma atuação conjunta que produzisse maiores resultados (efetividade) em todos os trabalhos realizados. Qual o problema em se compartilhar um dado, trabalhar juntos ou dividir estatísticas? Qual o problema para as demais polícias, um guarda municipal prender um criminoso e o apresentar para a autoridade policial de plantão? Qual o problema para o agente de trânsito, que outros policiais também possam lavrar um auto de infração? Qual o problema de um policial ostensivo elaborar um Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO), resolvendo o problema no local dos fatos e aliviando o carregado fluxo nas delegacias de polícia ? Qual o problema?

     A resposta sabemos, não toquem no sagrado e não ousem negociar o inegociável, pois a vaidade corporativa não permitirá.


3. A política na segurança pública e nas organizações policiais


     Este tópico daria para escrever uma enciclopédia de intermináveis volumes. Se a vaidade corporativa e as reservas legais de poderes se constituem em barreiras de complexa transposição, imaginem quando aliadas às forças políticas partidárias. Por serem as políciais subordinadas aos chefes dos Poderes Executivos, logo estamos falando de uma pessoa física, eleita por um determinado período e que representa uma ideologia partidária. Tal partido ao qual o governante está filiado, possui uma visão sobre como devem ser as políticas de segurança e mais ainda, qual o papel das polícias nesse contexto partidário e ideológico. Não importa qual partido ou sua inclinação (esquerda, centro ou direita), todos eles terão um policial de alta patente ou cargo,que também comungam de tais ideologias; se prestando a reproduzi-las em sua forma de dirigir e comandar. 

É extamente neste ponto, que a ideologia permeará a construção das políticas de governo, as ações afirmativas e direcionará a forma de ser a atuar das instituiçoes policiais. As polícias, diferente do poder judiciário e ministério público, não possuem autonomia administrativa, o que as colocam mais próximas de um formato de polícia de Governo do que de Estado. 

Aqui reside o perigo da existência ou manipulação para um formato de uma polícia política, muito distante do necessário modelo democrático, técnico, impessoal e eficiente. 

A ação política partidária no campo da segurança pública deve ser pautada com extrema sensibilidade social, transparência e inovação, sempre buscando atender os interesses supremos da coisa pública em detrimento de qualquer outro. Deve se alicerçar na construção de ações afirmativas efetivas para se alcançar a redução dos índices de insegurança, focando todos os esforços possíveis nos fenômenos primários e de repressão imediata aos delitos. Toda vez que isso não ocorre, interesses outros são mantidos e a sociedade padece refém do medo e das crescentes formas de violência.    

     A política partidária no campo da segurança pública deve representar possibilidade de transformação e modernidade, jamais de estagnação e atraso. Por sua vez, as polícias, diante das questões políticas, devem pautar sua participação, mais pela tecnicidade de seus atos do que por suas paixões ideológicas. Não vejo problema em um policial ter uma preferência ou paixão política, afinal é um cidadão, o que me preocupa sobremaneira, é quando elas anulam ou desfocam o seu lado técnico e profissional.

 

4. Segurança pública: Do senso comum às ciências policiais


Partindo do achismo, passando pela vaidade corporativa e desaguando nas cegueiras políticas-partidárias e ideológicas, em todas elas a tecnicidade das ações policiais é esquecida ou minimamente lembrada. Não podemos esquecer, que o resultado buscado nas ações do Estado é sempre o bem comum, a melhora das condições precárias que atingem o cidadão e a evolução da sociedade em todos os seus aspectos. A política, representa o canal por onde se busca as melhorias universais. Não se trata apenas de uma referência filosófoca, mas sim em uma forma de fazer o que tem que ser feito. 


     O que? Como? Quando? Onde? Quem? Custo?  São pontos de partidas de qualquer planejamento público ou privado e em todas essas etapas, há fatores técnicos envolvidos os quais pertencem as diversas ciências. Ao se tratar com os fenômenos que geram a insegurança e com as ações de construção de respostas efetivas para o seu enfrentamento, o empréstimo do saber ciêntifico multidisciplinar se faz imperativo pois os fatores geradores podem ser de origens diversas.

Não me resta nenhuma dúvida que a Polícia é um rico local de produção de conhecimento e integrada por cérebros incríveis. Talvez não muito motivados, apoiados e aproveitados em seus potenciais, mais isso não lhes retira suas capacidades cognitivas. Podemos questionar o "como fazem", mas não que são incapazes de faze-los.

     O senso comum, revestido de achismo, ainda rondam as políticas e os debates, mas em contrapartida, movimentos acadêmicos se debruçam sobre diversos temas relacionados, criticando tecnicamente e propondo processos de melhorias, governança e reegenharia policial. Estamos avançando, mesmo que lentamente, no campo das ciências policiais, não como deveriamos mas como o cruel sistema permite. 






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*Graduado em segurança pública e gestão pública. Pós-graduado em ciências policiais, segurança e ordem pública. Coordenador Acadêmico do Centro de Estudos e Ensino em Segurança Pública e Direitos Humanos (CESDH). Professor de graduaçao e pós-graduação. Jornalista especializado no tema segurança pública.

 professor.joaoalexandre.cesdh@gmail.com 


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